Num texto que reflui tempos e nomes, Alice Vieira conjuga sombras e personagens com sons distintos, humanamente possíveis, belos e densos, na pauta da sua escrita. A frase é melodiosa e até mesmo as palavras mais estranhas ou expressões desconhecidas acomodam-se dóceis e fazem-nos rir. Envolvida por uma atmosfera de segredos e histórias, iniciadas muito antes do seu nascimento, Marta refugia-se nas cantigas e nas aventuras do Príncipe Graciano pelas sete partidas do mundo, contadas pela velha e calorosa Leonor. Ouve um tempo em que as diligências cortavam planícies pelos corredores da casa e o seu pai não era Martim, mas Touro Sentado, em conversações sobre alianças e emboscadas com o Coiote Vermelho. Leonor contava o passado quando sentia saudades, ou quando se zangava com Flávia...
Marta sempre pensou que tudo tinha tido origem numa troca, coisas de mau destino que fizeram Flávia correr até ao hospital, como quem procura remédios para a dor de cabeça e, de lá, no entanto, retornaria com uma criança nos braços. Flávia jamais dizia o seu nome, jamais saía de casa, nem durante as férias. Com o tempo, talvez Marta viesse a ser a própria Alminha da Senhora, ou a Outra Pessoa de quem as pessoas não ousam falar. O silêncio invade a infância de Marta. Seria preciso permanecer imóvel como uma boneca de porcelana posta à exibição para as visitas porque mesmo os seus passos, por mais leves que fossem, despertariam a casa e as crises de Flávia que todos diziam ser a sua mãe mas que parecia não gostar dela.
É neste embalo que lentamente o prisma de emoções adquire movimento e vai lançando um feixe de luzes sobre os moradores vivos e ausentes da casa. Variados enredos ressoam assim iluminados pela maestria da autora e articulados pela narração de Marta, em diálogo muito próximo com alguém que não se vê (“Sabes como era Leonor: às vezes as palavras saíam-lhe da boca e, quando ia por elas, já elas estavam ditas.”) — e o leitor bem poderá sentir-se tentado a ocupar o cómodo lugar de ouvinte, ao mesmo tempo em que se sentirá observado pelos olhos vigilantes de Ana Marta. Finalmente, Flávia pronuncia o nome de Marta e aceita-a como a filha. Parece que um estilhaço saiu do seu coração…
Por Manuel Veloso
9ºA Nº7
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